Correspondente de O Beltrano em Nova York<\/span><\/em><\/p>\n Das mem\u00f3rias afetivas que Magda Coelho Moura tem da inf\u00e2ncia, uma das mais marcantes \u00e9 a lembran\u00e7a de ouvir a m\u00e3e contar sobre o sonho de morar nos Estados Unidos da Am\u00e9rica. \u201cQuando ela morreu eu estava com 18 anos. Ela nunca conheceu aqui. E todos os meus planos de estudar assist\u00eancia social na faculdade foram perdidos em meio ao pesadelo que foi perd\u00ea-la. Sou a filha mais velha e precisei ajudar meu pai a cuidar dos meus quatro irm\u00e3os. A minha vida virou de cabe\u00e7a para baixo. Dei prioridade ao trabalho e \u00e0 minha fam\u00edlia\u201d, diz.<\/span><\/p>\n Anos mais tarde, j\u00e1 casada com Domingos, Magda e o marido conquistaram uma vida est\u00e1vel no Brasil, ele trabalhando como agente de seguros de carros; ela como funcion\u00e1ria de uma loja. Mas ambos ambiciosos. Decidiram, ent\u00e3o, tentar a sorte dos EUA. \u201cEle me fez a proposta e eu pensei: \u2018por que n\u00e3o?\u2019. O sonho de estudar j\u00e1 tinha sido postergado por tantos anos que eu simplesmente quis arriscar de novo. Eu s\u00f3 n\u00e3o podia imaginar o pesadelo que viver\u00edamos naquela travessia\u201d.<\/span><\/p>\n Assim como muitos brasileiros, Magda e Domingos tentaram inicialmente entrar nos Estados Unidos pela porta da frente. Como a primeira (e \u00fanica) tentativa de conseguir o visto foi negada pelo consulado americano, o casal apostou em um plano B: entrar pela fronteira mexicana.<\/span><\/p>\n \u201cSe eu pudesse dar um conselho para quem pensa em fazer a travessia, eu diria, \u2018n\u00e3o fa\u00e7a isso\u2019. Eu jamais atravessaria de novo. Eu tinha 25 anos e n\u00e3o tinha ideia do que estava por vir. A gente ouve hist\u00f3rias, mas s\u00f3 vivendo para entender o pesadelo que \u00e9 aquilo\u201d.<\/span><\/p>\n Lua de mel<\/b><\/span><\/p>\n A fam\u00edlia de Magda sequer sabia que ela tentaria a travessia. \u201cEu sabia que eles ficariam preocupados. Ent\u00e3o, disse que est\u00e1vamos indo para Milho Verde, porque \u00e9 um lugar que eu sempre quis conhecer. Eles n\u00e3o tinham ideia de onde eu e Domingos est\u00e1vamos nos metendo\u201d.<\/span><\/p>\n A primeira parada foi na Cidade do M\u00e9xico, com roteiro parecido a um filme de terror. Na primeira semana, o casal se hospedou em um hotel confort\u00e1vel e cumpriu agenda de lua-de-mel.<\/span><\/p>\n \u201cNo in\u00edcio deu tudo certo. Fomos aos principais pontos tur\u00edsticos, museus, as pir\u00e2mides. Eu mal sabia o terror que estava por vir. Levei minha melhor mala, minhas melhores roupas, meus CDs favoritos, do Gil e do Caetano. Minha vida estava ali dentro e tudo foi ficando pra tr\u00e1s, no meio do caminho\u201d.<\/span><\/p>\n Pesadelo<\/b><\/span><\/p>\n Do conforto do hotel na cidade do M\u00e9xico, Magda e Domingos foram levados para um galp\u00e3o em Matamoros. Ali, ao encarar dezenas de pessoas que se amontoavam no ch\u00e3o \u00famido sobre colch\u00f5es sujos, o casal percebeu a cilada.<\/span><\/p>\n \u201cS\u00f3 quando entrei naquele lugar a ficha caiu. Os coiotes diziam que se f\u00f4ssemos pegos \u00edamos ter que fazer tudo o que eles pedissem. Eles mandaram a gente destruir nossos documentos. N\u00f3s rasgamos nosso passaporte, mas guardamos nossas identidades. Eu as escondi dentro de um pacote de absorvente e pensava: minha vida est\u00e1 aqui dentro agora\u201d.<\/span><\/p>\n Foi naquele galp\u00e3o que Magda viu todos os seus pertences serem distribu\u00eddos e disputados como se n\u00e3o pertencessem a ningu\u00e9m. \u201cEu olhava aquilo e pensava: \u2018meu Deus, eu trabalhei tanto para comprar tudo isso’. A minha cole\u00e7\u00e3o do Djavan\u2026 eu achei que estava fazendo uma viagem, mas a verdade \u00e9 que naquele momento nada daquilo importava mais. Eu precisava sair dali. A gente tinha que sobreviver. A gente tinha que atravessar a fronteira\u201d.<\/span><\/p>\n Sobreviv\u00eancia<\/b><\/span><\/p>\n Foram 20 dias presos no galp\u00e3o aguardando a ordem para se fazer a travessia. Entre os colch\u00f5es espalhados pelo ch\u00e3o, crian\u00e7as urinavam e ratos corriam sobre seus p\u00e9s. Os mais fr\u00e1geis dormiam sobre o ch\u00e3o batido. Um cano com \u00e1gua gelada improvisava um chuveiro. O banho era tomado a cada dois dias, porque a \u00e1gua era demasiadamente fria.<\/span><\/p>\n \u201cEu pensei tanto na minha m\u00e3e naqueles dias. Eu lembrava da comida dela, justo ela, aquela mineira cl\u00e1ssica que sempre cozinhou muito bem, com muito carinho, cuidado e tempero. E de repente eu estava ali: disputando peda\u00e7os de carne de bichos que eu nem sabia quais eram. N\u00f3s com\u00edamos aquilo ainda cru. A gente tinha que pegar logo sen\u00e3o n\u00e3o sobrava nada. Logo que a carne era colocada numa churrasqueira, as pessoas come\u00e7avam a pegar e comer. Elas estavam desesperadas e eu comecei a fazer o mesmo para conseguir sobreviver. Nesses dias eu comecei a pensar muito sobre n\u00f3s, humanos. N\u00f3s n\u00e3o somos nada\u201d.<\/span><\/p>\n Separa\u00e7\u00e3o<\/b><\/span><\/p>\n Magda e Domingos fizeram a travessia em novembro de 2000, primeiro ano de governo George W. Bush Jr. Naquele momento, cruzar a fronteira tornou-se ainda mais arriscado.<\/span><\/p>\n Foi por isso que os coiotes come\u00e7aram a dividir as pessoas que estavam no galp\u00e3o em grupos, separando homens de mulheres. \u201cEu nunca tive tanto medo. O que eu ia fazer naquele lugar sem meu marido? E ele, claro, n\u00e3o queria me deixar de jeito nenhum. Mas eu sabia que se n\u00f3s dois vir\u00e1ssemos um problema, n\u00e3o ir\u00edamos sair dali vivos\u201d.<\/span><\/p>\n Domingos, ent\u00e3o, deixou Magda no galp\u00e3o com um pequeno grupo de mulheres que at\u00e9 ent\u00e3o tamb\u00e9m seguiam viagem com os homens, maridos ou parentes. Foram tr\u00eas dias sem terem not\u00edcias um do outro. \u201cDias intermin\u00e1veis\u201d, recorda ela.<\/span><\/p>\n Depois que o marido seguiu rumo a fronteira, Magda adoeceu. Dormindo por dias no ch\u00e3o frio e tomando banhos de \u00e1gua gelada, veio uma febre avassaladora.<\/span><\/p>\n \u201cEu achei que ia morrer ali. Comecei a pensar no meu pai, nos meus irm\u00e3os. Eles sequer sabiam onde eu estava. J\u00e1 estava h\u00e1 20 dias sem dar not\u00edcias. Foi quando um dos coiotes percebeu que eu estava realmente mal e tentou ajudar. Ele comprou uma vitamina C e um cart\u00e3o para que eu pudesse falar com minha fam\u00edlia. Eu dizia a mim mesma: \u2018vai ficar tudo bem, o Domingos j\u00e1 foi, mas eu j\u00e1 estou indo\u2019. Um dos coiotes girava um rev\u00f3lver olhando pras meninas que estavam ao meu lado. Eu pensei: \u2018meu Deus, eu n\u00e3o posso morrer aqui\u2019\u201d.<\/span><\/p>\n Travessia<\/b><\/span><\/p>\n Magda e as outras mulheres foram colocadas dentro uma caminhonete. Dentro do carro elas receberam a orienta\u00e7\u00e3o de que seriam deixadas no meio da estrada e ficariam ali at\u00e9 um outro coiote chegar. \u201cFicamos esperando por cerca de uma hora, at\u00e9 que apareceu um homem que piscava uma lanterna. Come\u00e7amos a segui-lo e ap\u00f3s um bom tempo caminhando chegamos na ponte. Aquilo era um pesadelo sem fim. Caminh\u00e1vamos sobre ela e eu ainda estava muito debilitada. Foi quando o coiote disse: \u2018agora a gente tem que pular ali\u2019 e apontou para um buraco numa tela que estava h\u00e1 um metro e meio do ch\u00e3o. Naquele momento, eu lembrei da minha irm\u00e3 mais nova. T\u00ednhamos ido \u00e0 praia recentemente e ela ficava brincando no mar. Ela dizia: \u2018segura a boia pra mim\u2019, e passava por dentro daquele arco. Minhas for\u00e7as vieram dali. Elas sempre vieram da minha fam\u00edlia\u201d.<\/span><\/p>\n O polon\u00eas<\/b><\/span><\/p>\n Logo ap\u00f3s todo o grupo conseguir saltar e fazer a travessia, j\u00e1 nos Estados Unidos, Magda e as companheiras foram resgatadas na estrada por outro coiote e levadas para uma mans\u00e3o, em Houston, no Texas. Foi ali que ela reencontrou o marido. \u201cEle estava muito magro. Foi muito triste v\u00ea-lo daquele jeito, t\u00e3o mal. Ele me contou que passou pela mesma ponte, mas n\u00e3o havia um buraco na tela e por isso eles tiveram que escalar tr\u00eas metros de arame e saltar do alto\u201d.<\/span><\/p>\n \u00c0 esposa, Domingos contou sobre o polon\u00eas que se juntou ao grupo e se feriu enquanto atravessava a fronteira. \u201cEle tentou saltar e torceu o p\u00e9, n\u00e3o conseguia mais andar. O coiote gritava para o grupo abandonar o polon\u00eas, porque a imigra\u00e7\u00e3o o recolheria, mas meu marido disse que n\u00e3o teve coragem de deix\u00e1-lo para tr\u00e1s. Meu esposo come\u00e7ou a carregar esse homem nas costas e quando o coiote percebeu que ele n\u00e3o desistiria resolveu ajudar. Os tr\u00eas fizeram toda a travessia separados do restante do grupo. Quando a pol\u00edcia da imigra\u00e7\u00e3o sobrevoava a regi\u00e3o, eles se jogavam no ch\u00e3o. Depois de muita caminhada, eles finalmente chegaram no ponto de encontro dos demais\u201d.<\/span><\/p>\n Quando Magda chegou, tanto o marido quanto o polon\u00eas estavam desidratados e s\u00f3 aos poucos come\u00e7aram a se recuperar. Nunca mais o casal reencontrou o homem que ajudaram a salvar.<\/span><\/p>\n US$ 24 mil d\u00f3lares<\/b><\/span><\/p>\n Esse foi o valor que Magda e Domingos desembolsaram para fazer a travessia. Foram 30 dias entre o galp\u00e3o no M\u00e9xico at\u00e9 chegar em Nova York. Quando deixaram a mans\u00e3o, o casal ainda viajou por 31 horas em um caminh\u00e3o at\u00e9 o destino final.<\/span><\/p>\n Magda tinha 25 anos quando chegou aos Estados Unidos. Engravidou seis meses depois e ap\u00f3s tr\u00eas anos e meio teve a segunda filha. Hoje, aos 40, ela e Domingos recordam com saudades da fam\u00edlia.<\/span><\/p>\n \u201cH\u00e1 16 anos e meio n\u00e3o vejo meu pai. Ele j\u00e1 tentou o visto umas quatro vezes, mas n\u00e3o conseguiu at\u00e9 hoje. Eu sonho com o dia de poder voltar ao Brasil. As minhas filhas falam ingl\u00eas e portugu\u00eas fluentemente, porque eu quero que elas amem o pa\u00eds de onde viemos, o pa\u00eds onde seus av\u00f3s e tios est\u00e3o\u201d.<\/span><\/p>\n Apesar da saudade, Magda afirma que o casal n\u00e3o pensa mais em voltar a morar no Brasil. Ana Luiza, 15 anos, e Julia, de 12, visitam o pa\u00eds a cada dois anos. Nos EUA, Magda trabalha como house cleaning (limpeza de casa) e o marido \u00e9 carpinteiro. Recentemente, a filha mais velha foi chamada para fazer parte de um programa da Universidade de Fairfield, em Connecticut, uma das mais respeitadas do pa\u00eds.<\/span><\/p>\n Daqui a seis anos, Ana poder\u00e1 conseguir o Green Card para os pais. O documento pode ser concedido pelos filhos a partir dos 21 anos e d\u00e1 direito de resid\u00eancia permanente nos Estados Unidos para as pessoas que n\u00e3o s\u00e3o cidad\u00e3os da norte-americanos.<\/span><\/p>\n \u201cEu sempre lembro da minha m\u00e3e. Tudo que ela fez me preparou para o que sou hoje. Meu pai, meus irm\u00e3os… Sinto falta do biscoito de goma, do doce de leite, do caf\u00e9 no copo esmaltado. Dos anjos que Deus colocou na minha vida. Voc\u00ea n\u00e3o imagina o que s\u00e3o 17 anos de saudade\u201d.<\/span><\/p>\n [\/vc_column_text][\/vc_column][\/vc_row][vc_row][vc_column width=”1\/1″][uncode_block id=”61182″][\/vc_column][\/vc_row][vc_row][vc_column width=”1\/1″][vc_empty_space empty_h=”1″][vc_raw_html]JTNDZGl2JTIwY2xhc3MlM0QlMjJmYi1jb21tZW50cyUyMiUyMGRhdGEtaHJlZiUzRCUyMmh0dHAlM0ElMkYlMkZ3d3cub2JlbHRyYW5vLmNvbS5iciUyRiUzRnBvc3RfdHlwZSUzRHBvcnRmb2xpbyUyNnAlM0Q2MzcxNSUyNnByZXZpZXclM0R0cnVlJTIyJTNFJTNDJTJGZGl2JTNF[\/vc_raw_html][\/vc_column][\/vc_row]<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":" O Beltrano d\u00e1 sequ\u00eancia, nesta ter\u00e7a-feira, a s\u00e9rie de reportagens sobre brasileiros ilegais nos Estados Unidos. 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