Publicado em 21\/09\/2018<\/span><\/em><\/p>\n No dia 15 de mar\u00e7o de 1985, o pa\u00eds foi acordado com a not\u00edcia de que Tancredo Neves, eleito pelo Col\u00e9gio Eleitoral apenas dois meses antes, n\u00e3o tomaria posse na Presid\u00eancia da Rep\u00fablica. A t\u00e3o sonhada abertura virava um pesado, ou melhor, um calv\u00e1rio que se estendeu at\u00e9 de 21 de abril daquele mesmo ano. Mais que v\u00edtima de um diagn\u00f3stico completamente equivocado (de apendicite aguda), de uma promessa vil (de tomar posse 24 horas ap\u00f3s a cirurgia) e de um verdadeiro circo midi\u00e1tico (a primeira nota oficial sobre sua interna\u00e7\u00e3o, na noite do dia 14, fez com que um batalh\u00e3o de b\u00eabados deixasse as festas que antecediam a posse e acorresse para o Hospital de Base de Bras\u00edlia), Tancredo foi sacrificado por uma mentira. Desde os primeiros minutos do p\u00f3s-operat\u00f3rio, at\u00e9 o dia escolhido para sua morte, o que lhe restava da exist\u00eancia foi sendo carcomido, corro\u00eddo, arruinado pelo capricho daqueles em que mais confiou.<\/span><\/p>\n \u201cA imprensa n\u00e3o percebeu que a gravidade era muito maior daquilo que aparentava\u201d, disse o ent\u00e3o secret\u00e1rio de imprensa de Tancredo, Ant\u00f4nio Britto, em entrevista para o programa \u201cObservat\u00f3rio da Imprensa\u201d, da TVE, em 2010. \u201cTudo foi fruto da escolha de uma t\u00e9cnica errada, na primeira opera\u00e7\u00e3o\u201d, assegurou Luis Mir, autor do livro \u201cO Paciente \u2013 O Caso Tancredo Neves\u201d, em entrevista para o programa \u201cSP Agora\u201d, tamb\u00e9m em 2010. \u201c\u00c9 dito a ele que se tratava de uma cirurgia banal, r\u00e1pida e que ele poderia tomar posse no dia seguinte. \u00c9, talvez, o mais grave. Uma mentira bem-intencionada para tranquilizar o paciente, mas fizeram um pr\u00e9-operat\u00f3rio desastroso, uma cirurgia desnecess\u00e1ria e n\u00e3o avaliaram o que estava acontecendo\u201d.<\/span><\/span><\/p>\n Para Mir e para os especialistas que ouviu, a vaidade foi o maior pecado de todos. Pior, o caso sustenta uma mentira h\u00e1 exatos 33 anos, a farsa de que Tancredo morreu de complica\u00e7\u00f5es advindas de uma diverticulite, quando, na verdade, ele jamais apresentou tal quadro. Na primeira cirurgia a que se submeteu \u00e0s pressas, na v\u00e9spera de sua posse como presidente da rep\u00fablica, n\u00e3o foi extra\u00eddo um divert\u00edculo (de Meckel) intestinal, mas um leiomioma, um tumor ben\u00edgno \u2013 como atesta c\u00f3pia do Laudo de Bi\u00f3psia da Funda\u00e7\u00e3o Hospitalar do Distrito Federal, de 19 de abril, portanto quatro dias ap\u00f3s o procedimento, assinado pelo Dr. Holio Liniziara e pela Dra. Waldete C. Moraes.<\/span><\/span><\/p>\n Ao que tudo indica, a mentira foi gestada no decorrer da pr\u00f3pria cirurgia, que come\u00e7ou \u00e0 1h10, sob o diagn\u00f3stico de apendicite aguda, e terminou \u00e0s 2h45. A interven\u00e7\u00e3o levou uma plateia de 25 pessoas para dentro da sala de opera\u00e7\u00f5es, por onde passaram pelo menos 19 \u201cconvidados\u201d, entre parentes, pol\u00edticos e amigos. Com a mesa cir\u00fargica transformada em picadeiro, o circo teve momentos de comemora\u00e7\u00e3o, como aquele em que o cirurgi\u00e3o-chefe, Pinheiro Rocha, anunciou que se tratava de um \u201cdivert\u00edculo de Meckel\u201d, levando todos a se abra\u00e7arem em comemora\u00e7\u00e3o. Houve at\u00e9 mesmo um elemento de suspense, quando o cirurgi\u00e3o Gustavo Ribeiro, um dos convidados da \u201cfesta\u201d, notou que o suposto divert\u00edculo extra\u00eddo era, na verdade, um tumor intestinal, alertando Rocha.<\/span><\/span><\/p>\n Espet\u00e1culo e trof\u00e9u<\/b><\/span><\/p>\n Ao final do espet\u00e1culo, o material extra\u00eddo de Tancredo, que seria confirmado como um leiomioma, foi exibido para os familiares, como um trof\u00e9u. A \u201cconquista\u201d, ali\u00e1s, fez com que Pinheiro Rocha deixasse a sala de opera\u00e7\u00f5es antes do fim do tempo regulamentar, porque a imprensa e os caciques pol\u00edticos da \u00e9poca o aguardavam com a \u201cta\u00e7a\u201d \u2013 ele nega ter deixado o recinto, mas a informa\u00e7\u00e3o \u00e9 confirmada pelos primeiro e segundo cirurgi\u00f5es auxiliares, Aluisio Franca e Felipe Nery. O que nem ele e nem ningu\u00e9m poderia imaginar \u00e9 que nos minutos que se seguiram \u00e0 \u201cvolta ol\u00edmpica\u201d do cirurgi\u00e3o, quando Franca e Nery ainda fechavam a parede abdominal de Tancredo e lhe retiraram a ventila\u00e7\u00e3o mec\u00e2nica, o presidente teria um edema pulmonar.<\/span><\/p>\n Entre 3h30 e 5h15, Tancredo lutou contra dificuldades respirat\u00f3rias, quadros de taquicardia e hipertens\u00e3o graves. \u201cForam horas dram\u00e1ticas\u201d, enfatiza Mir em seu livro. O corre-corre para salv\u00e1-lo s\u00f3 terminou com o dia amanhecendo e, j\u00e1 certos de que a massa extra\u00edda do abd\u00f4men do paciente era um c\u00e2ncer, m\u00e9dicos e fam\u00edlia optaram pela mentira. A farsa, que consistia em esconder o tumor e forjar um laudo de diverticulite, fica evidente no conflito entre o primeiro boletim p\u00f3s-operat\u00f3rio (datado da madrugada do dia 15, \u00e0s 4h02), que afirma que \u201co ato cir\u00fargico transcorreu sem anormalidades\u201d e o relat\u00f3rio m\u00e9dico, o prontu\u00e1rio de Tancredo: \u201co paciente, ap\u00f3s o t\u00e9rmino da cirurgia, n\u00e3o conseguiu respirar espontaneamente\u201d.<\/span><\/p>\n A fam\u00edlia, em especial a esposa do presidente eleito, Risoleta Neves, foi quem pediu para os m\u00e9dicos n\u00e3o mencionarem o c\u00e2ncer, enquanto o filho, Tancredo Augusto, deixou a escolha para os cirurgi\u00f5es. O neto, A\u00e9cio Neves, ent\u00e3o com 25 anos, d\u00e1 tom oficial \u00e0 pantomima e, na manh\u00e3 subsequente \u00e0 interven\u00e7\u00e3o, fala \u00e0 imprensa: \u201cDiagn\u00f3stico: Divert\u00edculo de \u2018Beckel\u2019 \u2013 o correto seria diverticulite de Meckel. Sem o menor problema, o presidente passa bem, a cirurgia foi um \u00eaxito e o Brasil pode suspirar \u2013 provavelmente, A\u00e9cio queria dizer respirar \u2013 aliviado. O presidente Tancredo Neves deve tomar posse, amanh\u00e3, na Presid\u00eancia do Brasil\u201d.<\/span><\/p>\n Se A\u00e9cio j\u00e1 sabia que Tancredo n\u00e3o tomaria posse, s\u00f3 mesmo ele pode responder. Talvez ainda n\u00e3o tivesse o entendimento de que o av\u00f4 nunca seria empossado, mas, naquele momento, aderiu \u00e0 impostura, \u00e0 fraude. Pior, o presidente eleito seria submetido a outras cirurgias, sem apresentar melhora. No cap\u00edtulo mais degradante do embuste, escrito dez dias ap\u00f3s a malfada primeira interven\u00e7\u00e3o e apenas cinco dias ap\u00f3s a segunda, a vaidade cobrou um pre\u00e7o car\u00edssimo \u2013 ou, se o leitor preferir, impag\u00e1vel. Menos de quatro horas ap\u00f3s a veicula\u00e7\u00e3o de uma foto mentirosa, em que o paciente \u00e9 clicado ao lado de uma junta m\u00e9dia e da esposa, sorridente que s\u00f3 ela, ele tem uma hemorragia irrevers\u00edvel.<\/span><\/p>\n Situa\u00e7\u00e3o grav\u00edssima<\/b><\/span><\/p>\n Instantes antes de posar para aquela foto demon\u00edaca, Tancredo passara por uma endoscopia no reto e a echarpe que usou, dando um tom parisiense \u00e0 imagem, na verdade escondia um cat\u00e9ter. No mesmo instante em que a imagem ganhava as manchetes, prometendo sua posse para breve, ele apresentava um quadro de 40% de perda sangu\u00ednea. N\u00e3o bastasse a situa\u00e7\u00e3o grav\u00edssima em que o pol\u00edtico se encontrava, a veicula\u00e7\u00e3o de mentiras seguia o tom maquiav\u00e9lico: \u201cForam tiradas novas radiografias do pulm\u00e3o e as not\u00edcias, segundo o professor-doutor \u00c1lvaro de Magalh\u00e3es, diretor do departamento de radiologia do Hospital das Cl\u00ednicas, s\u00e3o muito boas. No pulm\u00e3o direito, a melhora foi t\u00e3o acentuada, que o professor chega a dizer que seu estado \u00e9 normal. Com isso, o presidente passa, cada vez mais, a respirar por seus pr\u00f3prios recursos\u201d, disse Britto, em boletim oficial transmitido em cadeia nacional de televis\u00e3o, no dia 4 de abril.<\/span><\/p>\n A data marca uma esp\u00e9cie de meio do caminho entre a primeira cirurgia, na madrugada de 15 de mar\u00e7o, e o \u00f3bito, em 21 de abril. Mais do que isso, ela marca as primeiras pun\u00e7\u00f5es de abscessos intra-abdominais. Tancredo n\u00e3o est\u00e1 melhorando, mas, sim, morrendo \u2013 cinco dias depois, ele j\u00e1 era um paciente terminal. O final desta hist\u00f3ria, cujos cap\u00edtulos macabros se sucederam por mais um m\u00eas, todos sabem, mas uma pergunta ainda n\u00e3o foi respondida: por que A\u00e9cio, a av\u00f3 e a fam\u00edlia compactuaram com a desonra? Por que sacrificaram Tancredo por uma mentira?<\/span><\/p>\n \u201cSe eu tivesse conhecimento \u2013 conhecimento que a fam\u00edlia tinha \u2013 das condi\u00e7\u00f5es em que ele se encontrava, eu teria indagado a Dona Risoleta sobre a situa\u00e7\u00e3o do presidente\u201d, declarou Britto. \u201cEra preciso avisar o pa\u00eds, por mais que o Brasil quisesse que tudo desse certo, mas eu n\u00e3o podia afrontar a fam\u00edlia\u201d, acrescentou. Uma nota oficial, divulgada pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), em 26 de fevereiro de 1986, confirmou que \u201cos boletins m\u00e9dicos, ao mesmo tempo que n\u00e3o refletiam a realidade, geraram a desconfian\u00e7a que estimulou o florescimento de informa\u00e7\u00e3o paralela\u201d.<\/span><\/p>\n J\u00e1 as conclus\u00f5es da Comiss\u00e3o de Sindic\u00e2ncia do Conselho Regional de Medicina do Estado de S\u00e3o Paulo (CREMESP), veiculadas na mesma data, inocentam a fam\u00edlia, trazendo que o \u201cdiagn\u00f3stico foi de \u2018leiomioma pediculado do intestino delgado com microabscessos\u2019, n\u00e3o tendo ocorrido solicita\u00e7\u00e3o, nem dos familiares, nem das autoridades, para fornecimento de laudo em contr\u00e1rio\u201d. Como se pode ver, \u00e9 mais uma mentira sem agente, uma lorota sem autor, um engodo que se materializa no ar. E parafraseando aquela que, no seu \u00faltimo instante de lucidez, teria sido a express\u00e3o derradeira de Tancredo, ele, realmente, \u201cn\u00e3o merecia isso\u201d.<\/span><\/p>\n <\/p>\n![\"\"](\"http:\/\/www.obeltrano.com.br\/site\/wp-content\/uploads\/2018\/09\/FOTO1-1024x711.jpg\")
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